segunda-feira, junho 21, 2010

Feminismo e Filosofia no sec 20


O feminismo nas transformações do pensamento no século 20: As bases de um problema atual
Por Marcia Tiburi



Imagem: Movimento Sufragista - início seculo XX -
Obs: Sim, mocinhas... mulher não tinha direito nem de votar até um pouco mais de um século atrás... pois então... ainda acham que o movimento feminista é prejudicial às mulheres?... P. Fox


O feminismo em fase de autojustificação:
Assim como é preciso ponderar a condição da filosofia pós-psicanálise e pós-Auschwitz, a filosofia após a queda do muro no século em que a civilização encontrou de vez a barbárie, é preciso, do mesmo modo, perguntar sobre a existência de uma filosofia pós-feminismo. Não é possível entender as transformações da filosofia no século passado, cujos efeitos ressoam sobre o nascimento do século 21, sem levar em conta o que nele floresceu como feminismo afetando até hoje a construção do pensamento, da história cultural e do cotidiano de homens e mulheres. Não é possível deixar de perguntar se o feminismo afetou a filosofia ou se o feminismo é um efeito da filosofia. Que haja um feminismo filosófico a ser analisado como material para uma história da filosofia não é mais importante do que entender o que ainda pode ser tratado como filosofia após a crise da razão para o qual o feminismo contribui em grande medida ainda hoje.

Como qualquer movimento revolucionário tanto da teoria quanto da prática, o feminismo causa incômodo. Compreendê-lo é uma tarefa do nosso tempo, quando seu alcance prático ainda gera efeitos também teóricos. Hoje não podemos mais falar de um feminismo, mas de diversas correntes, posições e autores que ajudaram a levar adiante a causa feminista, inclusive pondo-a em xeque e definindo um rumo ainda mais crítico para o pensamento dos nossos dias.

Filosofia, feminismo e modernidade:
Diz-se feminismo para todas as correntes de pensamento que se ocuparam dos direitos das mulheres e que surgiram, sobretudo, no século 18 no período iluminista. A existência intelectual de certas mulheres já fora afirmada e reconhecida, mas é apenas no Iluminismo que aparecem textos de feministas assim declaradas: Olympe de Gouges, na França, e Mary Wollstonecraft, na Inglaterra.

O feminismo filosófico não deve ser confundido com uma filosofia de mulheres, ainda que seja significativo que elas o construam. Podemos chamar feministas todos os poucos pensadores (de Condorcet a Stuart Mill) que defenderam os direitos das mulheres contra a esmagadora maioria de pensadores que discursaram contra as mulheres (de Platão a Kierkegaard, passando por Kant e Schopenhauer). O problema feminista para a filosofia deve ser compreendido em sua raiz epistemológica (como problema de conhecimento e sua fundamentação) e ética (como problema da ação e da decisão): que necessidade havia de fundamentar a razão - e a capacidade de argumentar com o poder que dela advém - como uma capacidade masculina contra a suposta natureza sensível das mulheres? Essa compartimentação das capacidades humanas precisa ser vista em termos políticos.

Feministas como Mary Wollstonecraft criticaram essa postura mostrando que havia algo de podre no reino do Iluminismo que se esforçava por construir uma "universalidade" da espécie humana excluindo dessa "universalidade" a metade representada por mulheres. Incorria assim numa autocontradição cujo ocultamento de figuras importantíssimas como Kant patrocinariam em termos de uma justificação jurídica que sempre apelou para uma natureza menor - intelectual e física - das mulheres. Que as mulheres não tivessem aptidão para o conhecimento era justificado na base de sua natureza maternal e sensível própria para ações que deviam ser confinadas no âmbito protegido do lar. O feminismo consequente do ponto de vista filosófico deve se ocupar hoje em questionar o que significa inclusive "as mulheres", se existe algo que deve ser colocado sob essa expressão.

É neste terreno, o da epistemologia, que se inscreve a importância da discussão sobre o feminismo, em primeiro lugar. Uma leitura feminista da filosofia transforma-se em método capaz de rever tanto a história da filosofia quanto a própria filosofia em seu sentido teórico e, como ética, em seu sentido prático. Que a filosofia tenha sido uma forma de pensar "de homens", que a racionalidade tenha se desenvolvido sempre de modo patriarcal, é o que coube ao feminismo entender e desconstruir. É o que cabe a ele ainda hoje questionar. Isso não deve levar, necessariamente, como tentaram realizar algumas feministas como Luce Irigaray, à possibilidade de construir uma fala "feminina" capaz de romper com a razão filosófica. Mas também não quer dizer que essa desconstrução não esteja em curso sob efeito do feminismo que, como epistemologia, tem se demonstrado uma verdadeira "teoria crítica" desmontadora de práticas de discurso com intenção metafísica, de fundação de um "ideal da mulher", do "sexo", ou mesmo do "gênero". Práticas estas que definem mulheres e homens como seres antagônicos culturalmente em função de uma suposta natureza - o sexo e o gênero - que as teorias mais tradicionais constantemente se esquivam em tratar como construções suas ocultando-as como se fossem verdades absolutas ou grandes descobertas.

Apenas a discussão contemporânea sobre o "gênero" veio desmanchar esta crença na natureza que não teria sido transformada pela cultura e que tomava as mulheres e os homens como prisioneiros de um sexo biológico sobre o qual não haveria interferência. Judith Butler, por exemplo, tratará até mesmo o sexo como uma construção alertando para o problema da linguagem humana como um poder na definição do pensamento e da ação. A discussão sobre gênero foi a chave para uma grande abertura teórica e prática no feminismo que acabou por reproduzir aquele objetivo bem antigo de construção de um ideal de universalidade em que todos os indivíduos, independentemente de sua sexualidade, tivessem lugar.

A mulher como Outro da Razão:
Um chão metafísico que tanto constrói quanto enclausura as mulheres ao dar base à suposta "natureza feminina" era o que estava em jogo até Simone de Beauvoir, em O segundo sexo, de 1949 - livro que foi um divisor de águas na própria história da filosofia ao levantar a questão do feminino como uma construção dos homens. Anos antes, Adorno e Horkheimer, analisando a construção patriarcal da razão na Dialética do Esclarecimento, já haviam sustentado com menos alarde a mesma tese. Mas é Beauvoir, tão criticada e, para alguns, já superada na discussão por pensadoras como Betty Friedan, Julia Kristeva e Judith Butler - todas envolvidas, cada uma a seu modo, com a crise da identidade feminina -, quem abre os olhos para problema. Que a mulher seja um Outro do homem, que a mulher seja um Outro da Razão, não é hipótese que se possa descartar sem uma crítica e análise cuidadosas. Foi essa posição de Beauvoir que levantou a cisão entre feminismo da igualdade, a corrente universalista em busca dos direitos das mulheres, e a essencialista, a corrente da diferença que tanto pode recorrer à igualdade de direitos, apesar da diferença de "natureza", quanto simplesmente sustentar o feminismo como guerra contra "homens" e, na verdade, em favor de um mundo de desigualdade que recai sobre as próprias mulheres, novamente defensoras da maternidade como principal papel metafísico sempre disfarçado de "papel natural", como a lúcida análise de Elisabeth Badinter mostrou nos últimos tempos. Todo feminismo consequente precisa continuar lutando pelo direito de cada um dentro do todo, sem ingenuidade de que os direitos se construam apenas pelos discursos, ainda que sua fundamentação passe por eles.


















Eu e Marcia Tiburi na palestra conduzida por ela sobre Feminismo e Fiolosofia (Espaço Cult - mar2009)

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